quarta-feira, 21 de março de 2012

Acto de contrição colectivo

O discurso da culpa colectiva, uma das formas mais primárias de criar carneiros submissos e combater as temíveis pulsões do mal absoluto, entrou na nossa sociedade sem grande esforço.

Nós, Portugueses, nos confessamos. Mentimos e acreditámos em mentiras.

Há vergonha no Partido Socialista. Tímido, senão incapaz de defender uma herança que em várias áreas seria expectável vê-lo assumir orgulhosamente como sua (foi também assim com a de António Guterres), torna-se presa fácil dentro da narrativa.

Agora, sempre que vier defender uma medida com resultados positivos, o Governo puxará a carta do despesismo, da derrapagem das contas. Todos nós sabemos fazer isso. Basta que, ao considerar um orçamento (que é uma previsão), se incluam todos e mais alguns custos associados. Resultado: derrapagem sobre derrapagem.

Ainda não ouvi ninguém vir recordar os princípios que estiveram na origem do investimento na reabilitação das escolas, por exemplo. Foi keynesianismo? Foi. Qual era o objectivo? Era relançar a economia. Sim, houve um tempo em que a Europa ainda se preocupava com o relançamento da sua economia a curto prazo. Por isso acordou, quando a crise se tornou mais ameaçadora, um programa de relançamento da economia. Em Portugal, as medidas incluíam a requalificação das escolas. Havia procura. Foram mobilizados fundos europeus para esse fim. Era a redistribuição europeia a funcionar. Os resultados seriam quase imediatos, tanto para a qualidade do ambiente de ensino, como para o crescimento e o emprego.

Erros de governação haverá sempre, mas reduzi-los ao estilo de um homem é risível. A incontornável margem de erro não pode impedir decisões e os políticos são eleitos para tomar decisões. Reduzir uma decisão política a uma mera operação contabilística é esvaziá-la da sua essência.

Para tecnocracias, já nos bastaram 10 anos de governação cavaquista.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Das premissas

Compõem esta narrativa algumas premissas irrefutáveis.

Citando apenas algumas delas:

i. a culpa, que em primeira instância é do Sócrates, mas que na realidade é de todos nós, uma culpa colectiva, cheia de pecados originais, que agora devemos expiar apenas e só pela via do sacrifício e da clemência perante a troika;

ii. a certeza, ex post – obviamente, todos estes vaticínios e oráculos são ex post - de que andámos a viver acima das nossas possibilidades;

iii. a modernização do País reduzida a má gestão das contas públicas e despesismo (ou, se preferirem, megalomania e obsessão do anterior governo);

iv. a pobreza extrema da maioria da população como um ‘facto incontornável’ que nos empenhámos em ignorar, acreditando que caminhávamos para o ideal de uma sociedade mais coesa e baseada na igualdade de oportunidades, quando na realidade só caminhávamos rumo ao abismo;

v. as políticas públicas de educação, formação, qualificação enquanto ‘manigância’ para mascarar a realidade de uma população vocacionada para a lavoura e o ensino profissionalizante;

vi. as novas tecnologias de informação e comunicação, o acesso a computadores generalizado e à banda larga, como uma simples forma de deslumbrar gerações perdidas à partida e dar a ganhar a empresas de amigos;

vii. os salários demasiado elevados que aniquilam a nossa competitividade;

viii. a necessidade absoluta de cortar e reformar para garantir a defesa do Estado social;

ix. a crónica do malandro, mau aluno europeu;

x. Portugal não é a Grécia. É provavelmente a única afirmação verdadeira no meio de todas estas falácias. Nós não somos a Grécia. A Grécia era exemplo corriqueiro quando se falava de estatísticas. 80% da população activa grega era funcionária pública, o que lhe permitia ter uma espécie de rendimento mínimo garantido e contar com um segundo emprego para equilibrar as contas.

Bem-vindos à narrativa

Diz-nos o dicionário que uma narrativa é um relato de acontecimentos que remetem para o conhecimento do homem e das suas realidades. É uma história, real ou imaginária, que pode ganhar contornos de romance, novela, conto ou epopeia.

São elementos básicos da narrativa: narrador, acção, cenário (realista ou fantástico) e personagens, distribuídas em diferentes categorias (protagonista ou herói; antagonista ou vilão, figurantes) e geralmente divididas entre o bem e o mal.

Palavra presente no nosso quotidiano pela mão dos livros, a narrativa fez erupção na nossa vida política, importada de fora, como tudo o que tem popularidade garantida em Portugal.

De repente, só se fala em narrativa. É o Primeiro Ministro, é o Ministro das Finanças, o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Todos nos dizem que temos que alterar a narrativa. A comunicação social difunde. Só nós é que não vemos, por estarmos tão embrenhados nela, que a narrativa já não é uma história, é a nossa triste realidade.

Lembram-se das aulas de Português? Da dificuldade que por vezes tínhamos em qualificar de aberta ou fechada a narrativa? Pois bem, esta é fácil. Atiraram-nos para uma narrativa fechada, com final anunciado.

Sabe-se que no final haverá vencedores e vencidos. É fácil antecipar quais serão uns e outros. O País será o grande vencido. Vencerão os afortunados da Providência divina, contra o parasitismo instalado. Na verdade, são tão parasitas quanto aqueles que acusam de parasitismo do Estado-pai, os únicos parasitas possíveis de um Estado mínimo. Os outros, os que beneficiavam da indevida segurança do Estado Providência, esses já estão mais do que vencidos, e não é só pelos cortes nos ‘privilégios’, é por esta desesperança no futuro.

A teia, a narrativa, pois que é essa a palavra da moda neste início de década, está montada. As personagens e o décor estão definidos. Só não sabemos se será uma mini-série, se uma longa-metragem. Tudo dependerá da capacidade das personagens de resistir às regras. Era preciso que personagens vilãs se tornassem boazinhas no decorrer da narrativa, passasem do mal ao bem. Haverá alguma capaz desse volte-face?